quinta-feira, março 01, 2007

A Minha Vida Deu Um Filme


Tarnation é uma espécie de pequeno "evangelho" fílmico, se atendermos à origem etimológica da palavra "evangelho", que significa "boa nova". È-o não apenas porque quase inaugura um novo género (algo que poderíamos situar nas imediações do "autobiographical docu-therapy"), mas também porque se constitui como filme adventício de uma nova era do cinema, a do do it yourself, do lotech film-making, em que qualquer pessoa pode pegar numa câmera barata e recorrer a software de edição de imagem para contar a "sua" história.
Foi o que Jonathan Caouette fez em Tarnation, aquele que é provavelmente o filme menos dispendioso de sempre (custou apenas uns escassos 218 dólares), para contar, de forma pessoalíssima, originalíssima e incomparável, a história da sua indiossincrática e estranha vida. No mundo do cinema actual haveria um antes e depois de Jonathan Caouette: ele seria uma espécie de pequeno profeta de uma nova era do filme (a da democratização e liberalização totais da sua produção e criação) e Tarnation algo como um "evangelho"que poderia servir de modelo, inspiração e revelação a uma nova "geração" de filmes em que "cidadãos anónimos" contariam, em registo de autodocumentário catártico, a história das suas vidas (desde que valesse a "pena" ser contada).
Tarnation é a articulação narrativa numa espécie de psicodrama familiar do que foi a vida de Caouette, marcada pela doença maníaco-depressiva da mãe (durante anos erroneamente diagnosticada como esquizofrenia), (mas que, apesar da doença, ou sobretudo graças a ela, revela uma curiosa veia "filosófica" e "existencial"), mas também pela experiência de ser criado maioritariamente pelos avós, de crescer homossexual ou de aprender a lidar com a sua própria perturbação emocional (um transtorno da personalidade que dá pelo nome de "despersonalização", e é caracterizado por sentimentos de perda de identidade e desrealização, como se a realidade fosse um sonho - daí também o onirismo e psicadelismo de Tarnation).
Alguns poderão acusar Tarnation de ser um exercicio de "terapia exposta", de ser narcísio, vampírico, sentimentalista, auto-indulgente ou até pornograficamente confessional - mas o que fica para a história é um filme comovente, corajosamente liberal e com um valor redentor e "curativo" brutal.